Comissão Europeia adota proposta polémica que põe rótulo verde no gás natural e no nuclear

03/02/2022 | Energia

Comissários confirmam o seu apoio ao acto delegado complementar da taxonomia verde, para promoção de investimento nas actividades do sector da energia que contribuem para a descarbonização. Eurodeputados e Estados-membros têm prazo de quatro meses para apresentar objecções e impedir que a legislação entre em vigor.

Só a oposição de uma maioria qualificada reforçada de 20 dos 27 Estados-membros da União Europeia, ou o voto contra de pelo menos 353 eurodeputados no plenário do Parlamento Europeu, ou então uma decisão judicial, poderá impedir a entrada em vigor do segundo acto delegado complementar da chamada taxonomia do financiamento sustentável, um sistema de classificação comum das actividades económicas “verdes”, que designa o gás natural e o nuclear como fontes de energia de transição, para efeitos de captação de investimento.

O colégio de comissários adoptou, esta quarta-feira, a sua proposta de acto delegado relativo à dimensão climática do regulamento da taxonomia verde, que foi desenhada para servir como guia de classificação, e como referência das obrigações de transparência e verificação, para os investidores e instituições financeiras responsáveis pela promoção e desenvolvimento de projectos no sector energético.

O texto final inclui ligeiros “ajustes” face ao rascunho original, que foi apresentado aos Estados-membros no final do dia 31 de Dezembro de 2021, e provocou enorme celeuma, motivando duras críticas por parte de governantes, especialistas e activistas do combate às alterações climáticas e até altos responsáveis do sector financeiro, como por exemplo o presidente do Banco Europeu de Investimentos.

A proposta da Comissão vai facilitar o “desvio” de milhares de milhões de euros de financiamento para projectos com elevada pegada ambiental, em vez de canalizar o investimento na produção de energia a partir de fontes de renováveis, lamentam os críticos. Além disso, denunciam, a decisão do executivo comunitário, põe em causa o cumprimento das metas climáticas, de redução em pelo menos 55% das emissões de gases com efeito de estufa até 2030, e de neutralidade carbónica em 2050, que foram vertidas para a lei europeia e se tornaram vinculativas na UE.

Com o acordo político desta quarta-feira no colégio de comissários, o texto legislativo será formalmente adoptado assim que se concluir o processo de tradução para todas as línguas oficiais da UE. A comissária para os Serviços Financeiros, Estabilidade Financeira e União dos Mercados de Capitais, Mairead McGuinness, explicou a decisão de avançar, mesmo perante o coro de críticas. “Temos menos de 30 anos para atingir a neutralidade climática, precisamos de usar todos os instrumentos à nossa disposição para acelerar a mudança de fontes de energia muito poluentes, como o carvão, para fontes renováveis ou de baixo valor em carbono”, defendeu.

McGuiness insistiu que a taxonomia verde “é um instrumento de transparência financeira e não de política energética”, lembrando que o sistema de classificação da Comissão se destina a orientar os mercados de capitais. “A taxonomia não proíbe nem mandata investimentos, apenas assinala aos interessados em investir nestas tecnologias que têm de cumprir um conjunto de critérios muito estritos”, sublinhou.

A comissária reconheceu que, na formulação da proposta, a Comissão se debateu com algumas das dúvidas que são levantadas pelos críticos da classificação do gás natural e do nuclear como “energias de transição”, mas que agiu no respeito pela ciência e também pela realidade (muito diversa) nos Estados-membros. “Durante um período de transição, temos de aceitar soluções imperfeitas, mas realistas e pragmáticas, que nos aproximam do nosso objectivo de neutralidade”, referiu.

Agora a bola passa para o campo do Parlamento Europeu e do Conselho da UE. O acto delegado só entrará em vigor se os dois co-legisladores, que não participam na elaboração ou aprovação da proposta, não apresentarem objecções ao texto num prazo de quatro meses, que ainda pode ser alargado por mais dois. E tudo indica que não deixarão de o fazer: já durante o período obrigatório de consultas, que terminou no passado dia 21 de Janeiro, os parlamentares, os peritos nomeados pelos Estados-membros e os técnicos da Plataforma para o Financiamento Sustentável apresentaram reclamações e apontaram inconsistências com as projecções de descarbonização no rascunho do executivo.

Em função desses contributos, a Comissão clarificou alguns dos conceitos e reviu alguns dos critérios que justificaram a inclusão do gás natural e do nuclear na taxonomia verde, apesar de a sua exploração não ser sustentável. “Ambas podem representar um meio para facilitar a transição energética, que é um processo que vai exigir investimento maciço que só pode vir do sector privado”, justificou uma fonte do executivo, apontando para as projecções que colocam nos 350 mil milhões de euros anuais as necessidades de investimento para a UE atingir os objectivos do Green Deal. “É um montante incomportável para as finanças públicas”, considerou.

A maior parte das alterações diz respeito aos critérios para a operação das unidades que utilizam o gás natural, e ao horizonte temporal para o seu funcionamento: em 2035 já só poderão utilizar gases de baixo carbono, como o hidrogénio, na produção de electricidade. Em relação à energia nuclear, foram revistas as normas de segurança relativas à eliminação de resíduos radioactivos, entre outras.

Mas as mudanças não convencem os críticos, que já se estão a movimentar para tentar bloquear a entrada em vigor do acto delegado complementar, prevista para 1 de Janeiro de 2023. As maiores “esperanças” residem na acção do Parlamento Europeu, onde já estão confirmados 250 votos contra a legislação, vindos da bancada dos Verdes, da Esquerda e dos Socialistas & Democratas. Os esforços para arregimentar os cem que ainda faltam incidem sobre os membros da bancada do Partido Popular Europeu, a maior do hemiciclo, que está dividida na questão. O grupo liberal Renovar a Europa, que é liderado pelo eurodeputado francês, Stéphane Séjourné, aliado do Presidente Emmanuel Macron, apoia a proposta da Comissão.

Para os Verdes no Parlamento Europeu, trata-se de “um erro histórico da Comissão”, que na sua interpretação cedeu às pressões políticas e confundiu duas realidades diferentes: a necessidade de recorrer ao gás natural como energia de transição, e a sua classificação como uma fonte de energia verde, incentivando os investimentos nessa tecnologia. O caso do nuclear é ainda mais incompreensível para o eurodeputado holandês, Bas Eickhout, para quem o rótulo verde não é necessário para as decisões dos investidores privados, uma vez que a operação deste tipo de unidades está dependente do financiamento público.

A França, que assegura a presidência do Conselho da União Europeia até ao fim de Junho, é a maior defensora da inclusão do nuclear na taxonomia verde, mas não é o único país que apoia a proposta: tem ao seu lado pelo menos mais 15 parceiros, entre os quais aqueles que defendem a produção de electricidade em centrais nucleares (que corresponde hoje a 26% da produção eléctrica na Europa).

A Alemanha, que prevê o encerramento de todas as suas centrais nucleares até ao fim deste ano, concorda com a classificação do gás natural como energia de transição, pelo que não deverá levantar objecções. Fervorosamente contra a inclusão do nuclear na taxonomia verde estão Áustria, Dinamarca, Luxemburgo; sem expectativas de conseguir uma maioria qualificada reforçada para travar a proposta no Conselho da UE, estes Estados-membros admitem recorrer aos tribunais.

Mairead McGuiness considerou “perfeitamente legítimo” e “normal” que os Estados-membros avaliem se através da via judicial poderão fazer prevalecer os seus argumentos. Uma fonte do executivo observou, porem, que a Comissão acredita que a justificação jurídica em que assenta o acto delegado complementar “é muito sólida” e resistirá ao escrutínio do Tribunal de Justiça europeu.

No dia 1 de Janeiro, entrou em vigor o primeiro acto delegado complementar à taxonomia verde, relativo à atenuação e adaptação às alterações climáticas, que abrange 170 actividades económicas, representando cerca de 40% das empresas cotadas na UE, em sectores responsáveis por cerca de 80% das actuais emissões de CO2 para a atmosfera. Como informou Mairead McGuiness, a Comissão ainda vai apresentar mais quatro propostas de actos delegados complementares ao regulamento, relacionados com os restantes objectivos ambientais da taxonomia verde: água, economia circular, prevenção da poluição e biodiversidade. Mas não foi avançado qualquer prazo para a apresentação dessas propostas.

FONTE: JORNAL PÚBLICO

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